A Ordem dos Advogados do Brasil, Seccional do Rio Grande do Sul, vem por meio da presente, externar sua contrariedade e preocupação, bem como alertar a sociedade quanto ao Parecer Final aprovado na Câmara dos Deputados, que alterou o texto original da Medida Provisória 1045/21, incluindo diretrizes rígidas sobre a justiça gratuita e revogando artigos do Código de Processo Civil, o que não era objeto do texto original. Diga-se que, devido ao pouquíssimo debate, a sociedade brasileira vê-se surpreendida com a aprovação precoce na Câmara.
O parecer, de relatoria do Deputado Christino Áureo (PP/RJ), importa o rígido critério já trazido no PL nº 6.160/2019, em especial no que tange à criação de requisitos objetivos baseados exclusivamente na renda per capita ou familiar, para obtenção do benefício de assistência judiciária gratuita no âmbito dos Juizados Especiais Federais e no rito ordinário da Justiça Federal.
É de ser lembrado que a OAB/RS, em 2019, já se manifestou através do seu Conselho Pleno e por Nota Pública contra os mesmos critérios, que agora foram embutidos, surpreendentemente, na Medida Provisória referida.
Em suma, o parecer aprovado na MPV 1045/21, assim como previa o PL nº 6160/19, dentre outras alterações, acrescenta o Art. 3º-A na Lei nº 10.259/2001, que dispõe acerca da instituição dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal, determinando que o acesso ao Juizado Especial Federal Cível independerá de custas, taxas ou despesas processuais apenas na hipótese de concessão de assistência judiciária gratuita, destinada tão somente a pessoa pertencente à família de baixa renda, entendidas como aquelas que possuem renda familiar per capita de até meio salário mínimo ou com renda mensal familiar de até três salários mínimos (hoje R$ 3.300,00). O critério é estendido a todo o âmbito da Justiça Federal, pois o projeto referido altera a Lei nº 5.010/1966, inserindo idêntico critério para a gratuidade.
Atualmente, o acesso aos Juizados Especiais Federais independe, em primeiro grau de jurisdição, do pagamento de custas, taxas ou despesas, por força da aplicação do Art. 54 da Lei nº 9.099/1995. Em se tratando do rito ordinário, ou grau recursal do juizado, cabe ao Juiz analisar as condições econômicas do cidadão para a concessão do benefício.
Ressalta-se que os Juizados Especiais Federais foram criados para processar, conciliar e julgar causas de competência da Justiça Federal até o valor de 60 (sessenta) salários mínimos, de forma a ser rápido e célere e, em especial, garantir o acesso à Justiça Federal por todos.
Neste sentido, desde a sua criação, milhares das ações que tramitam neste rito – obrigatoriamente – não possuem o recolhimento de custas processuais, taxas ou despesas. Atualmente, mais de 80% dessas lides são de natureza previdenciária. Os Juizados Especiais, assim, cumpriram um papel de inclusão e de acesso à Justiça, abarcando uma grande demanda contida.
Não se desconhece que nos últimos tempos houve expressivo aumento das demandas judiciais, em especial naquelas que envolvem a matéria previdenciária, aumentando, evidentemente, o custo da máquina judiciária.
Entretanto, a intensa judicialização deve-se não apenas às inúmeras alterações ocorridas no sistema previdenciário – muitas delas promovidas por meio de Medidas Provisórias que sequer são convertidas em lei – mas, essencialmente, pela evidente ineficiência na prestação do serviço público previdenciário, seja pela ausência de reposição dos servidores públicos, que acarretam em excessiva demora na análise dos processos administrativos, seja pela manutenção de procedimentos e decisões administrativos já há muito ultrapassados, que contrariam os consolidados entendimentos jurisprudenciais.
Destarte, o Poder Judiciário representa, àqueles que enfrentam a insegurança jurídica na via administrativa, a última instância que poderá assegurar a dignidade da pessoa humana. Recentemente, passamos por uma grande reforma previdenciária, com profundas alterações que poderão resultar em questionamentos por parte do cidadão. O projeto, assim, vem claramente no sentido de dificultar tal movimento.
Entende-se por inconstitucional o projeto ao criar restrição demasiada ao acesso à Justiça. Uma família, por exemplo, em que vivam três pessoas - pai e mãe aposentados recebendo cada um R$ 1.200,00 e um filho recebendo R$ 1.200,00 em um emprego - já teriam renda acima do parâmetro fixado. E isso levaria o casal a ter receio de ingressar com uma ação judicial, por exemplo, para corrigir o valor de sua aposentadoria.
Os valores descritos sequer atendem as necessidades básicas de uma família. Na Justiça Federal, além das custas e da sucumbência, há muitos casos de perícias técnicas para apuração de tempo especial (dos mais diversos setores e empresas), perícias médicas, contábeis, uma série de encargos possíveis incompatíveis com o valor que se quer atribuir.
Resta evidente que o parecer reflete diretamente o espírito das políticas apontadas pela “Estratégia Nacional Integrada para Desjudicialização da Previdência Social”, apresentado no dia 20/08/2019, com a criação do Comitê Executivo de Desjudicialização, do qual fazem parte o Conselho Nacional de Justiça, Conselho da Justiça Federal, Ministério da Economia, Advocacia-Geral da União, Defensoria Pública da União, Secretaria Especial de Previdência e Trabalho e o Instituto Nacional do Seguro Social.
Importante destacar que a OAB não foi convidada a integrar o referido Comitê, em evidente prejuízo à parte mais fraca da relação previdenciária, quais sejam, os beneficiários. O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, por meio da sua Comissão Especial de Direito Previdenciário, manifestou, oportunamente, sua preocupação com tal atitude, mediante publicação de nota pública.
Assim, não surpreende que surjam no cenário legislativo projetos que contenham normas tão restritivas e que penalizem o cidadão, uma vez que não foram propiciados espaços para a representatividade dos interesses da cidadania, pela falta de um ator primordial que é a Ordem dos Advogados do Brasil. Grife-se que a maioria dos processos da Justiça Federal são patrocinados por advogados privados.
O projeto em questão atribui um parâmetro totalmente dissociado da realidade reconhecida inclusive pelos tribunais pátrios ao concederem o benefício da gratuidade e retira dos juízes a possibilidade de analisar as nuances e peculiaridades de cada caso concreto.
O parecer também revoga artigos do Código de Processo Civil e inclui o mesmo critério absurdo em substituição, sem qualquer debate com a sociedade.
Diante desse quadro, a OABRS, que de forma unânime pelo seu Conselho Pleno foi contrária a este critério, por intermédio de sua Comissão de Seguridade Social, a qual representa os valorosos advogados e advogadas previdenciaristas gaúchos - profissionais estes que prestam um extraordinário papel na garantia de direitos fundamentais dos menos favorecidos - não se calará diante de tamanha injustiça, representada pela restrição abusiva do acesso à jurisdição previdenciária.
A criação de requisitos objetivos para que o jurisdicionado possa ser beneficiário da gratuidade da justiça, através de critérios essencialmente econômicos, limitando a isenção somente àqueles que beiram a miserabilidade – especialmente em momento de recessão econômica que assola nosso país e que, por sua vez, acarreta em maior procura pela proteção social – é penalizar esse cidadão com o custo da ineficiência da máquina pública e excluí-lo, em última análise, da efetiva proteção social.
Ao cidadão deveria ser permitido questionar sem embaraços e exercer sua cidadania plena ao postular a correta interpretação de seus direitos previdenciários, que não são de simples interpretação.
A OAB/RS apoia e incentiva a adoção de medidas que visem a melhorar a prestação jurisdicional, de forma a reequilibrar as despesas públicas, desde que tais medidas não sejam em prejuízo do acesso à justiça, prejudicando justamente quem mais precisa. Com certeza, o critério de gratuidade do citado não é uma dessas medidas. Pelo contrário, é medida prejudicial aos pobres, contrária à cidadania e efetivação de direitos fundamentais.
Por essa razão, a OAB/RS atuará junto ao Conselho Federal e ao Congresso Nacional, a fim de que sejam revistos os termos do projeto, chamando a advocacia e toda a sociedade para participar do diálogo de construção de um acesso à Justiça amplo e condizente com o interesse da cidadania.
Ricardo Breier
Presidente da OAB/RS
Tiago Beck Kidricki
Presidente da Comissão de Seguridade Social da OAB/RS
Fonte: OAB/RS